Ponto de vista: Lya Luft
Família:
como fazer
"A boa família é aquela que,
até quando não nos compreende, quando desaprova alguma escolha
nossa, mesmo assim nos faz sentir aceitos e respeitados. É onde
sempre somos queridos e onde sempre temos lugar".
Talvez sendo rigorosa, creio que
nas escolhas importantes revelamos o que pensamos merecer. Casamento,
trabalho, prazer, estilo de vida, nos cuidados ou nos descuidos –
não importa. Mas a família, esse chão sobre o qual caminhamos por
toda a vida, seja ele esburacado ou plano, ensolarado ou sombrio, não
é uma escolha nossa. Porque lhe atribuo uma importância tão
grande, para o bem e para o mal, ela tem sido tema recorrente de meu
trabalho, em livros, artigos e palestras.
Pela família, com a qual
eventualmente nem gostaríamos de conviver, somos parcialmente
moldados, condenados ou salvos. Ela nos lega as memórias ternas, o
necessário otimismo, a segurança – ou a baixa auto-estima e os
processos destrutivos. Esse pequeno território é nosso campo de
treinamento como seres humanos. Misto de amor e conflito, ela é que
nos dá os verdadeiros amigos e os melhores amores. Para saber o que
seria uma família positiva (não gosto do termo "normal"),
deixemos de lado os estereótipos da mãe vitimizada, geradora de
culpas e raiva; do pai provedor, destinado a trabalhar pelo sustento
da família, sem espaço para ter, ele próprio, carinho e escuta; e
dos filhos sempre talentosos e amorosos com seus pais. A boa família,
na verdade, é aquela que, até quando não nos compreende, quando
desaprova alguma escolha nossa, mesmo assim nos faz sentir aceitos e
respeitados. É onde sempre somos queridos e onde sempre temos lugar.
Idealização? Não creio. Fantasia é esperar que pais, irmãos e
também filhos nos aprovem integralmente. Para começar, pai e mãe
são seres humanos como quaisquer outros.
Quanto aos filhos, se crescerem de
uma forma saudável, eles serão menos centrados nos pais do que em
sua própria vida. Isso não é desamor, é amadurecimento e
autonomia. A nós, adultos, cabe continuar a ter para eles ombro,
colo, abraço, o possível entendimento, não lhes pesando demais
quando buscam seus caminhos. Nenhuma relação subsiste – a não
ser as doentes – sem conflitos e a manutenção dos espaços
individuais. A família não está condenada ao "para sempre,
ainda que a indiferença ou o abandono nos matem em vida". Ela
tem chance de uma transformação positiva. Não precisamos ficar
juntos por preconceito alheio, acomodação ou culpa, mas porque nos
faz bem, porque isso nos torna seres humanos melhores, capazes de ter
– e de dar – mais felicidade. E, mesmo que nos separemos, ou
porque os filhos vivem suas vidas ou porque às vezes pais se separam
(sem deixar de ser pai e mãe daqueles filhos), o amor deve
persistir, e expandir-se na forma de respeito e aceitação do outro.
Assisti recentemente a uma cena pungente, em que pai e mãe,
separados mas amigos, despediam-se de uma filha muitíssimo amada,
morta em plena juventude.
Sofriam uma perda inimaginável, que
lembrava a todos nós, seus amigos, a nossa própria fragilidade.
Nunca esquecerei a dignidade desses pais no sofrimento, os cuidados
um com o outro, a inclusão de amigos e novos cônjuges no seu
momento trágico. Dessa forma, prestavam uma homenagem ainda mais
especial à filha que perdiam. Seria comum essa transformação e
multiplicação de afetos, na dor e na alegria, se, em lugar de
egoístas, patéticos e confusos, fôssemos mais generosos, maduros e
equilibrados. Nesse caso, porém, escritores, psiquiatras,
antropólogos, sociólogos e tantos outros profissionais da alma
humana ficariam privados de uma intrigante fonte de trabalho e
reflexão.
Texto de Lya Luft é escritora
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